A arte como um modelo de negócio 

Em meio a um setor marcado por informalidade e instabilidade, artistas do Distrito Federal apostam em profissionalização, redes sociais e estratégia para transformar sua arte em fonte de renda e sustento de suas famílias
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Em meio a um setor marcado por informalidade e instabilidade, artistas do Distrito Federal apostam em profissionalização, redes sociais e estratégia para transformar sua arte em fonte de renda e sustento de suas famílias

Reportagem: Guilherme Vicente de Morais

Em meio a transformações sociais, tecnológicas e econômicas, a arte tem buscado mais que reconhecimento simbólico: ela reivindica espaço como atividade econômica estratégica. No Brasil, e particularmente no Distrito Federal, a cultura deixa de ser apenas expressão estética para afirmar-se também como vetor de desenvolvimento, geração de renda e protagonismo social. A chamada economia criativa – que engloba atividades como música, artes visuais, literatura, audiovisual, design, moda e artesanato – já responde por uma fatia relevante do Produto Interno Bruto (PIB) e movimenta bilhões de reais anualmente.

Segundo o economista e professor do Ibmec Brasília, William Baghdassarian, a economia criativa gerou mais de R$ 9 bilhões para o DF em 2022, representando 3,5% do PIB local – desempenho superior à média nacional. Com aproximadamente 130 mil pessoas empregadas no setor, o Distrito Federal ocupa o segundo lugar no País em percentual de trabalhadores na área, atrás apenas de São Paulo. Para ele, o setor tem potencial para crescer ainda mais, especialmente pela sinergia com áreas como turismo, inovação, tecnologia e meio ambiente. “Trata-se de uma atividade intensiva em mão de obra qualificada, que pode ser sustentável e gerar resultados econômicos consistentes no longo prazo”, afirma.

Ao mesmo tempo, o setor enfrenta desafios estruturais. A informalidade, a escassez de dados, a instabilidade nos editais públicos e a falta de formação empreendedora entre os artistas são gargalos que dificultam a profissionalização. “Muitos ainda veem a arte como vocação ou dom, o que é legítimo, mas não suficiente para garantir sustentabilidade. É preciso entender que se trata também de um setor produtivo que exige gestão, planejamento e política pública consistente”, analisa Carol Peres, gestora cultural e formadora de agentes criativos em Brasília.

Em meio a esse cenário, artistas da capital federal vêm encontrando caminhos diversos para transformar a arte em fonte de renda e atividade profissional estruturada. Suas trajetórias, embora distintas, revelam os dilemas de um setor em busca de amadurecimento: como precificar a criação? Como lidar com o mercado sem perder identidade? Como equilibrar expressão e estratégia?

Ganhar a vida exclusivamente com arte ainda é um grande desafio. A artista plástica Loreni dividi o tempo de criação artística com o expediente em uma empresa da capital. Foto: Arquivo Pessoal

Foi esse dilema que acompanhou a artista plástica Loreni Schenkel ao longo de sua trajetória. Formada pela Universidade de Brasília (UnB) após os 40 anos, ela concilia há mais de uma década sua rotina no setor privado com o trabalho artístico. “Os sábados são meu tempo sagrado de criação. Ali, o ateliê se transforma em espaço de experimentação e entrega.”, conta. Para viabilizar suas obras, Loreni desenvolveu um método próprio de precificação, que considera o custo dos insumos, o tempo dedicado à produção e sua inserção no mercado. “Negócio com transparência e flexibilidade, mas sem abrir mão do valor simbólico e do trabalho intelectual da obra”.

Ilustrador aposta na presença digital para divulgar seu trabalho e ganhar mercado. Foto: Arquivo Pessoal

A realidade é semelhante para o ilustrador Cícero Lopes, que estruturou sua carreira a partir da própria vivência como autista. “A organização, a previsibilidade e a comunicação direta são essenciais para mim. Isso se refletiu na forma como conduzo meu trabalho.”, afirma. Com um portfólio online, presença constante nas redes sociais e participação em eventos estratégicos, ele consegue comercializar suas obras e prestar serviços para editoras e empresas. “Transformar a arte em um negócio exige, antes de tudo, entender o seu valor – e saber como comunicá-lo”.

Na música, a busca por profissionalização também é evidente. A cantora Duda Martins entrou no mercado sertanejo enfrentando resistências de gênero. “Era um ambiente dominado por homens. Precisei mostrar que mulher também pode ocupar esse espaço com competência e força.”, relembra. Hoje, ela e sua equipe utilizam redes sociais, plataformas de streaming e estratégias de marketing digital como base para divulgação e vendas. “O conteúdo patrocinado nos permite alcançar públicos fora do DF e gerar renda consistente.”, explica.

“A música além de paixão, é negócio.” – Leon Correia. Foto: Arquivo Pessoal 

Já o cantor e compositor Leon Correia começou a carreira cantando em festas escolares e boates adolescentes com a banda “Di Menor”, formada por adolescentes. Com poucos recursos, dependia da ajuda de amigos e familiares. “Faltava quase tudo, menos vontade de fazer acontecer”. Atualmente, com assessoria profissional, ele entende que a música, além de paixão, é negócio. “Ser verdadeiro na entrega artística é o mínimo, mas entender de estratégia e montar uma boa equipe faz toda a diferença”.

“A música além de paixão, é negócio.” – Leon Correia. Foto: Arquivo Pessoal 

Para além das histórias individuais, há um consenso de que o setor ainda carece de políticas públicas mais estruturadas. “Brasília tem uma cena vibrante, empresas com potencial de patrocínio e artistas talentosos, mas faltam políticas de longo prazo e uma maior articulação entre os atores do sistema.”, avalia Loreni. Carol Peres reforça: “É preciso tratar os projetos culturais como negócios, com metas, orçamento, plano de comunicação. Sem isso, a cultura segue dependendo de esforços isolados”.

Baghdassarian acredita que o DF tem um papel estratégico no cenário nacional. “A capital possui instituições, renda média elevada e demanda por cultura de qualidade. Eventos como Na Praia, Festival de Brasília, Latinidades e Favela Sounds mostram como a cultura pode impulsionar outros setores, por exemplo, gastronomia e turismo”, aponta. O futuro do setor, segundo ele, passa pela integração com a tecnologia e a digitalização dos modelos de negócio. “A personalização de conteúdo, os modelos de assinatura e o financiamento coletivo vêm ampliando a autonomia dos artistas e criadores. A economia criativa será cada vez mais central na nova economia”.

Enquanto os números confirmam o potencial econômico do setor, as histórias dos artistas de Brasília revelam o que está por trás das estatísticas: o esforço cotidiano de quem transforma sensibilidade em sustento, vocação em trabalho, criação em profissão. A arte, quando compreendida em sua complexidade – simbólica, emocional e econômica –, mostra-se não apenas um modelo de negócio possível, mas, sim, necessário para um país que precisa de novas formas de geração de renda, inclusão e identidade.

Ainda há entraves, desigualdades e lacunas estruturais, mas o cenário começa a mudar. A profissionalização caminha, mesmo que de forma desigual, e já é possível enxergar uma luz no fim do túnel. O que antes parecia utopia – viver da própria arte com dignidade – hoje, desenha-se, passo a passo, como um horizonte real para quem ousa criar com coragem e empreender com consciência.

“O DF já faz parte do circuito nacional da economia criativa. E ainda há muito espaço para crescer.”

William Baghdassarian, economista
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